Diogo Hashimoto*
 
O maior obstáculo atual para o engajamento político, acima da educação e da conscientização, encontra-se na dissociação emocional entre as classes médias com as classes menos favorecidas.
A História registra que as grandes mudanças e revoluções só foram possíveis graças ao engajamento e envolvimento das classes médias. Afinal, somente essas podem mesclar, em um mesmo momento, o descontentamento e a vontade de melhorar de vida, juntamente com o conhecimento de causa e a capacidade intelectual. Os mais abastados, resguardados sob o guarda-chuva da situação, não têm a motivação necessária para, de fato, melhorar a sociedade. Já a classe baixa, embora rica em energia e legítima necessidade em promover as mudanças que tanto necessita, sofre com a falta de conhecimento e amadurecimento intelectual por conta da privação na educação, e não são capazes de, sozinhas, modificar positivamente o status quo.
Hoje, na sociedade brasileira, o distanciamento entre essas camadas sociais chega, por vezes, a beirar uma guerra civil não declarada. Isso fica claro, por exemplo, na idolatria despertada à Polícia Militar ou à Rota quando estas realizam a execução de suspeitos de crimes, no apoio eufórico a jornalistas que incentivam o açoitamento público de marginais, ou quando pessoas se inflamam ao apoiar a redução da maioridade penal.
É bastante claro o posicionamento, muitas vezes enfático, desta porção da população quando o assunto é a punição dos infringentes. Porém, a situação precária do SUS não tem sido capaz de causar a comoção que o assunto merece, tampouco situações, a princípio constrangedoras para qualquer cidadão conivente, como o trabalho e prostituição infantil, saneamento precário e a educação pública sucateada.
 
Infelizmente, as classes médias não conseguem mais enxergar a conexão de todo o sistema. É incapaz de fazer a ligação entre os pontos da educação de má qualidade, da falta de saneamento e das condições precárias da saúde, com os pontos da violência, da crise nos transportes e da economia cambaleante.
Na realidade, a conexão lógica entre causa e efeito ocorre a princípio, porém esta é sumariamente substituída pelas emoções perversas que surgem em relação às classes mais baixas. A verdade é que nutrimos em nosso interior um sentimento negativo de coação e superioridade em relação aos menos favorecidos, e são nessas emoções que despendemos a maior parte de nossa energia, das nossas conversas e do nosso tempo.
Somos bombardeados por notícias negativas; casos de latrocínios, jovens cometendo crimes aterradores, tráfico de drogas incessante, dentre tantos outros. E nesse caldeirão de atrocidades, surgem nossa raiva e nosso sentimento de punição. Afinal, alguém deve sempre pagar.
E não é por acaso. Penso que o rechaçamento dos direitos humanos é algo programático, talvez conduzido pelos detentores das comunicações em massa. Pondo à parte possíveis teorias conspiratórias, o fato é que os direitos humanos são negligenciados em grande parte do tempo, não tendo oportunidades de exporem todo o trabalho árduo que é feito cotidianamente, ou alguém já viu e reviu o trabalho que representantes dos direitos humanos fazem nas favelas do Brasil? Ou mesmo na busca incessante por justiça racial, de gêneros e dos marginalizados? Posso garantir que exitem trabalhos incríveis que são feitos em diversas esferas da sociedade, mas que carecem de oportunidades de divulgação.
Mas a exposição é bastante diferente quando casos desastrosos, horrendos ocorrem. Nestes momentos, o representante dos direitos humanos é apresentando como alguém que surge do nada apenas para a defesa dos bandidos, quando a quase totalidade da população clama pelo açoitamento público do marginal. Infelizmente, nesses momentos, quando os efeitos de nossa negligência às classes mais baixas faz surtir efeito, quando geramos delinquentes contra a sociedade, já é tarde demais. As emoções tomam corpo, o sentimento de justiça é mais forte que nossa capacidade de cognição, e nossa conclusão, precipitada, é de que a punição deve ser severa, ou até mesmo ilegal. Alguns dirão: “mas os representantes dos direitos humanos estão dizendo o contrário, estão falando em algo relacionado a causa raiz, a melhores condições aos menos favorecidos, falando em educação. Não, não é aceitável, devem ser loucos. Que adotem um meliante, então!”
E por fim, por desconhecerem todo o trabalho feito pelos direitos humanos não veiculado nas grandes mídias, por ignorância à lógica que seus representantes defendem, e conduzidos pelo senso comum, a população acaba por desacreditar todo o trabalho e princípios dessas organizações, tratando seus representantes como hipócritas e defensores de bandidos.
Outro fator que contribui para este distanciamento emocional são as possibilidades de se ter os serviços não prestados pelo Estado por vias alternativas. Educação, Saúde e Segurança podem ser contratados pelas classes médias, então pra que lutar por estes serviços para os outros? Esta indagação ficou muito clara quando, nas manifestações de Junho de 2013, muitos disseram indignados “mas a maioria que está lá não usa transporte público! Devem ser um bando de baderneiros sem causa”. E, em resposta a estes questionamentos, placas dizendo “Desculpe pelo transtorno, estamos consertando o Brasil”, infelizmente, devem ter feito sentido para poucos. O fato é que a luta pelos direitos das classes mais baixas, além de ser humanitária, acarreta na melhoria de todo o sistema. Na verdade, é a única forma de se melhorar consistentemente o dia a dia das classes médias.
Programas de TV também contribuem para esta perversa relação, como programas policiais e jornais com suas enxurradas de negatividade, sem nunca expor ao menos um ponto de partida para discussões sobre as reais origens dos problemas. Em doses cavalares de casos criminais, expondo-os sem a devida ponderação de como sanar tais mazelas, essas matérias geram uma nutrição inacabável dos sentimentos adversos às classes baixas, “às origens dos bandidos”, fazendo crer que a única saída atual é a punição pela punição.
Agora, punição pela punição funciona? Será que ninguém percebe que para cada ladrão de leite preso, cria-se um criminoso muito mais perigoso quando este sai da cadeia? Será que é difícil entender que cada assassinato cometido pela polícia gera o ódio em comunidades carentes acompanhado de um desequilíbrio absurdo dos poderes da democracia? Será que é tão irreal pensarmos que o aumento de latrocínios, roubos seguidos de mortes, possui conexão com o ódio escancarado que a classe média possui pelas classes baixas? Ainda assim, é possível alguém defender um sistema policialesco de forma racional? Acredito que não.
E quem ganha com essa confusão são os governantes que, enquanto não fazem nada para melhorar a qualidade de vida da sociedade, veem as classes altas em sua conivência habitual, as classes baixas sem condições de reivindicações e as classes médias, aquelas que possuem os recursos necessários e a legítima necessidade em cobrar os governantes, ocupadas em discutir maneiras de coação dos infringentes e formas de manutenção de sua precária condição atual. Não há a reivindicação, a partir das classes médias, para que se alcance o Estado do Bem Estar Social, não sendo possível o progresso das classes baixas, as quais, sendo a maior fonte de votos dentre as três, são mantidas com medidas paliativas que soam como benfeitorias, como o bolsa família (programa social necessário, mas que tem sido mau gerido e ineficaz como política pública abrangente). Assim, temos uma sociedade travada, com as classes médias e as classes baixas distanciadas, e a governabilidade então é garantida.
A situação, à primeira vista, parece-me complexa demais, intangível, distante de uma solução, mas há de haver um começo. E para manter simples, pensemos que o foco deve ser o Estado e suas políticas públicas. Vamos refletir, pensar e acreditar que, quando lutamos pelas classes menos favorecidas, lutamos também pelo sistema como um todo. Precisamos discutir mais soluções do que problemas, policiar nossos sentimentos, e, por fim, ligar os pontos das causas com os pontos dos efeitos e ver que ao final todos ganham.
Se desejamos um trânsito melhor nas cidades, vamos brigar por um sistema de transporte público eficiente e acessível; se queremos maior segurança nas ruas, vamos lutar por condições melhores aos serviços públicos prestados; se esperamos “aquele” crescimento econômico tão alardeado, vamos batalhar por um sistema de educação pública de excelência.
Façamos nossa parte, que há uma sociedade inteira dependendo de nós.
 
Obs: As referências às classes utilizados no texto não se baseiam no rendimento médio anual, mas sim a classificação de favorecimento ou desfavorecimento na atual situação. Classes altas são a porção da sociedade que é predominantemente favorecida pela situação, as médias são a porção que tanto é favorecida quanto é desfavorecida, e as baixas são a porção que é predominantemente desfavorecida no contexto atual.
 

* Diogo Hashimoto é profissional da área de Saúde e voluntário do Movimento Voto Consciente